They dance alone
Quando passeio com a minha mais velha, cruzo-me com outros passeantes de bichos. Com o tempo, vamos criando algum contacto. Não sei como se chamam o donos, mas sei como se chamam os bichos, como se comportam, de que é que gostam ou não gostam.
Também sei da minha bicha, se gosta, se não gosta, se é para mudar de passeio ou se, pelo contrário, quer muito ir ter com aquele que ali vem, mesmo apesar de não ser dada a grandes simpatias com todos, só com aqueles de quem ela gosta.
Com o passar do tempo, vamos conhecendo e aprendendo a perceber a que horas é que encontramos quem.
É um mapeamento emocional do bairro. Para-se um bocadinho, enquanto eles se cheiram (acho sempre imensa piada aos donos que ficam muito encavacados quando os seus cães cheiram o rabo da minha cadela - pedem imensas desculpas e tentam puxar os bichos - deixe lá o bicho estar à vontade, que eles não têm esses impedimentos).
E trocam-se dois dedos de conversa, sempre sobre os bichos, que idade tem, de que é que gosta, a que é que é alérgico, se teve mazelas, se está a recuperar, que está magro (ou gordo), e demais idiossincrasias próprias, que só os donos identificam.
Às vezes vejo as pessoas sem bicho, durante o dia, e não as reconheço. "Desculpe - sem a Maré não a reconheci". Verdade seja dita, que ligo mais aos bichos que os donos.
Há duas semanas, no passeio da noite, cruzo-me com o dono do Thor. Um sharpei malhado, adulto, que ao princípio era pouco amigável (mas nunca agressivo) que, à custa de bocadinhos de salmão, se foi tornando mais amistoso :-) O Thor e a Uma nunca foram de grandes intimidades, mas também não foram de grandes agressividades.
Estranhei a ausência do bicho e perguntei, então, sem Thor?
"O Thor morreu, de repente, de um momento para o outro, sem que nada o fizesse prever, no dia seguinte àquele em que nos encontrámos e em que brincou com a Uma Lembra-se, que até estranhei a sua ter reagido à presença dele e ter vindo atrás, lamber-lhe as orelhas? Não passou do dia seguinte. Tenho continuado a dar os passeios, porque me ajudam."
Foi um murro no estômago. Não era sequer um cão sénior. Era um cão adulto, bem constituído, saudável. Um daqueles azares.
Tenho-me cruzado com o dono do Thor quase todas as noites. Custa-me, vê-lo pela metade, de cabeça baixa, a fazer festas a todos os bichos com quem se cruza. Levo a mão ao bolso, para is buscar o salmão, num reflexo condicionado que ainda não me abandonou.
Confronto-me com o meu futuro. Longínquo, espero, mas inevitável. Não farei os nossos passeios sem a minha mais velha. Pode ser que venha a fazer outros. Mas acho que não farei os mesmos.
Há caminhos que não se percorrem pela metade.