Voto eletrónico? Não, obrigada.
Na sequência da desmaterialização dos cadernos eleitorais nas últimas eleições europeias (escrevi sobre isso aqui, aqui, e aqui - tudo auto-links), e como seria de esperar, ouviram-se algumas vozes falar em voto eletrónico.
Na altura pensei em escrever um post a explicar porque é que, sendo a favor da desmaterialização dos cadernos eleitorais (melhorando o processo e tornando-o mais seguro e menos vulnerável), sou VIOLENTAMENTE contra o voto eletrónico.
Reparem, voto eletrónico nem sequer diz respeito ao voto pela internet, a partir do dispositivo de cada um, voto eletrónico é a ausência de papel, e o registo exclusivamente digital do voto dos cidadãos.
De acordo com a constituição portuguesa, "O povo exerce o poder político através do sufrágio universal, igual, direto, secreto,......."
Portanto, esta coisa de ter de ser secreto, universal e igual, arruma logo com o voto por internet.
Vamos ao voto eletrónico. Aquele em que as pessoas se deslocam à assembleia de voto e têm, em vez de caneta e papel, uma maquineta, onde registam o seu voto.
O atual sistema de voto, existe há milhares de anos. O primeiro registo é da Grécia antiga. Não era universal, não era igual, mas era secreto. As pessoas registavam fisicamente a sua intenção, fosse numa folha, num bocado de argila ou, como atualmente, num papel. Há uma manifestação física do voto de cada pessoa. Ora, um sistema que existe há milhares de anos, e que tem vindo a evoluir ao longo do tempo, tem a enorme vantagem de já ter sido testado milhões de vezes. E já muita gente terá pensado e tentado furar o esquema. Já foram tentados todos os tipos de fraude. E o sistema evoluiu, para mitigar essas fraudes. E já se percebeu há muito tempo, que para haver impacto, a sério, no atual sistema, é preciso que haja muita, muita gente envolvida e, como sabemos, o único segredo que se consegue guardar é aquele que não partilhamos com ninguém. Muita gente a saber de uma fraude, porque vai participar nela, ou porque o tio, ou a namorada, ou whatever, significa que a coisa não tem pernas para andar, porque rapidamente se identifica a tentativa de fraude.
Não estou a falar do presidente da junta que, de cabeça perdida porque o seu partido está em clara desvantagem nas sondagens, decide meter meia dúzia de votos na urna. Isso não tem impacto (além de que precisa da cumplicidade duma série de gente). Essas são fraudes locais, com nenhum impacto no resultado final e que, mesmo assim, vêm a lume e são investigadas.
Fraude a sério, com capacidade para virar o resultado de umas eleições, com o atual sistema, é impossível.
O que é bom.
Outra vantagem do atual sistema é o facto de ser simples, compreensível e acessível a todas as pessoas, independentemente do seu background, grau de instrução, cultura ou conhecimento. Toda a gente percebe como funciona e qualquer palerma, mesmo com pouco recursos intelectuais, consegue auditar o processo, ou perceber se existe algum problema.
Convém também que o processo seja seguro, e que essa segurança seja percetível e palpável por todos. A confiança no sistema de voto é fundamental. Não é à toa que os partidos anti democráticos clamem por fraude por dá cá aquela palha (sem link que não dou palco a porcos). O atual sistema é seguro e inspira confiança, precisamente porque toda a gente percebe como funciona.
Policiamento e auditoria. Num processo em que confiamos, é preciso desconfiar de tudo, por isso é que o voto é secreto, para não ser manipulável de fora, sujeito a pressões e subornos. É a pessoa, sozinha, numa cabine de voto, com uma caneta, vota, dobra o boletim e insere na urna, que está sempre vigiada por várias pessoas diferentes e de diferentes cores políticas. Este processo é fácil de auditar, e policiamo-nos todos uns aos outros. E bem. Este policiamento de todos por todos acontece também no momento da contagem e da elaboração da ata.
(Há países onde o suborno funciona especialmente bem, como em Itália, onde existe quem pague por voto num determinado partido, mediante fotografia do boletim de voto devidamente assinalado, o que, como sabemos não serve de nada, porque as pessoas podem perfeitamente tirar a foto, anular o voto e pedir outro boletim. Já se o fazem, são outros quinhentos).
E há também o Bulgarian Train. Mas, lá está, a coisa acaba por se saber, além de que é preciso ter MUITO dinheiro.
Portanto, atual sistema, funciona, inspira confiança, manipulado com muita dificuldade, seguro, simples e funciona.
Vamos então ao voto eletrónico, e a minha pergunta começa por ser, para quê? Se temos um sistema que funciona, que é simples, seguro e de confiança, vamos substituí-lo porquê? Se não existe um problema para resolver, porquê mudar?
As respostas que obtenho, habitualmente, são duas. As questões ambientais, por causa do papel, e as questões da rapidez na obtenção do resultado. Sou sensível à primeira, de facto. Gostava que se gastasse menos papel. Mas, antes de tentarmos eliminar os boletins de voto por motivos ambientais, temos muito que fazer nessa área, portanto, chutemos essa questão lá mais para a frente.
Já quanto à segunda, o tempo de espera pelos resultados, até consigo compreender quando se trata de países gigantes, quase continentais. Se umas eleições em Portugal são um evento com uma logística desafiante, num país grande, a coisa é muitíssimo mais exigente e complexa. Mas em Portugal? Somos meia dúzia de gatos pingados, ainda por cima votamos cada vez menos, os resultados sabem-se no mesmo dia, o mais tardar no dia seguinte. Lá está, mais um problema que não precisa de ser resolvido.
Mas a minha objeção não passa pelo facto do atual sistema não precisar de ser mudado, nem apresentar nenhum problema que precise de ser resolvido.
O meu problema tem a ver com tudo o resto.
A começar pelo equipamento e respetivo software (idealmente software livre, que sempre é mais auditável, mas na maioria dos casos, software proprietário, em que a quantidade de gente que consegue auditar se resume e meia dúzia de pessoas). Quem assegura que não está vulnerável e comprometido? Não é qualquer pessoa, ao contrário do método atual, é preciso competências técnicas que estão muito longe do cidadão comum. Portanto, passamos de um esquema em que a auditoria é global, simples e acessível a qualquer pessoa, para um sistema em que a auditoria está ao alcance de apenas alguns. É logo um mau ponto de partida. Logicamente, mina a confiança.
E, mesmo que não estejam vulneráveis nem comprometidos hoje, o que é que me garante que não venham a estar amanhã, depois de uma atualização disto, ou daquilo?
A segurança dos equipamentos e das estruturas é uma ilusão. Qualquer pessoa que trabalhe na área da segurança informática, confirma isto. Há sistemas mais protegidos, há sistemas menos protegidos, mas não há sistemas invioláveis ou seguros a 100%. É o jogo do gato e do rato. Uns protegem, outros tentam furar. E os que protegem vão criando mais proteções, à medida que se vão identificando novas vulnerabilidades. E os que furam, vão continuando a tentar furar. É assim que funciona e é uma indústria de trilhões de euros (ou dólares, como preferirem).
A logística que o voto em papel apresenta a quem quer cometer uma fraude, é diametralmente oposta à logística de quem quer cometer fraude com voto digital. Se em papel precisamos de muita gente para causar, mesmo assim, pouco impacto e acaba sempre por se saber, com o voto digital é precisamente o contrário, pouca gente pode conseguir causar um grande impacto, e sem nunca se saber, porque não precisam, sequer, de estar no mesmo país onde decorrem as eleições que querem falsificar. Mínimo esforço, máximo impacto. Entram e saem, e o pessoal nem se apercebe de nada.
Contar os votos, em papel, é fácil. Facílimo. Já o fiz por duas vezes, em legislativas. Pode existir a dúvida pontual de "isto é válido?" mas é a clara exceção, e toda a gente vê, e toda a gente conta e confirma o número de votos de cada partido, e o número de boletins tem de coincidir com o número de eleitores cujo voto foi registado nos cadernos eleitorais. Contar votos digitais é diferente. A máquina cospe um número, e a malta tem de engolir o número que a máquina cospe, sem qualquer possibilidade de validação ou dupla confirmação. Neste, como noutro casos, não engulas, cospe.
Já houve um teste com voto eletrónico em Portugal. Na altura passou-me ao lado. Foi em Évora, nas europeias de 2019. O relatório do MAI sobre a coisa pode ser visto aqui, mas tenho mais confiança no parecer da CNPD que foi demolidor. Tenho mais confiança na CNPD que, ao longo dos anos tem vindo a ser cada vez mais desautorizada (por ser incómoda), do que nos gajos do MAI que, de acordo com o seu próprio comunicado, pré-agendam uma atualização de segurança ao sistema não só para o dia das eleições, mas para o horário em que se esperava um pico de afluência às urnas. Não inspira grande confiança nem para a desmaterialização dos cadernos eleitorais, quanto mais para o voto eletrónico.
Portanto, para concluir, que isto já vai longo (parece que agora só consigo escrever testamentos), deixo-vos com dois vídeos, em inglês, de um gajo que apesar de um bocadinho acelerado demais para o meu gosto, explica mais e mais profundamente os motivos dele, que são basicamente, os mesmos que os meus. Aqui, e aqui.
Voto eletrónico não resolve nenhum problema, não é seguro, não é confiável, não é universalmente auditável, não é desejável.