Eu tenho álibi para sair de casa, para além das compras. Chama-se Uma. Damos grandes passeatas todos os dias. Uma logo de manhã muito cedo, outra ao final do dia. Nisso, os hábitos não mudaram.
No sítio onde passeio, durante a semana, de manhã, nunca havia muita gente. Hoje há um bocadinho menos. E há os regulares, com quem já estava estabelecida uma ligação. Os 3 corredores que me dizem "olá" quase em uníssono, a miúda que corre com um pedal desgraçado e que mesmo assim arranja energia para me acenar, dizer bom dia e sorrir (é profissional das corridas de certeza absoluta), a senhora de meia-idade que faz sempre uma festa enorme à Uma e que me liga muito pouco (my kind of girl), a dona da Maré, e os velhotes. Há vários tipos de velhotes, uns sozinhos (elas) outros acompanhados e há um casal.
Este post é sobre esse casal. São velhotes. Mais de 75 anos. Andam juntos, mais ou menos, porque ele vai à frente, sempre com um speed do caraças, e ela vai mais calmamente, atrás, de vez em quando ele para e fica à espera que ela percorra os 200 metros que os separam, e quando ela se chega, ele zarpa outra vez. Há uns tempos comentei com ela "o seu marido vai sempre cheio de pressa" e ela riu-se e disse que ele gostava assim, e que era uma companhia, e que sem ele ela não vinha, portanto, estava tudo bem. Ela tem dificuldades a andar. São os dois muito simpáticos.
Ontem vi-os ao longe e perguntei-me se teriam algum apoio. Ele aproxima-se e pára ao pé de mim, eu meto conversa, assim como quem não quer a coisa, a tentar perceber se precisam de ajuda ou se têm rede, mas sem perguntar diretamente, para que o senhor não se sentisse ofendido. Eles são mais susceptíveis que elas. A conversa foi hilariante.
Oh menina, isto não é nada. Nós vivemos em Moçambique, quando eles estavam em guerra, e era uma fome terrível, vínhamos a Portugal, nas férias, engordávamos 20kg porque já sabíamos que no regresso, não havia nada e era preciso criar reservas. Não é agora esta bicheza que vai dar cabo de nós. E eu a pensar, oh caraças........ andam a fazer a vidinha de sempre. A senhora vem a meio caminho, ainda há tempo para mais conversa.
Nós temos uma filha que é médica pediatra e que todos os dias telefone e quer um relatório (ok, fico descansada, têm apoio), e nós mentimos, porque sabemos que ela fica muito aflita. No primeiro dia dissemos que tínhamos vindo para aqui passear, e ela proibiu-nos (e ria-se muito, com a proibição da filha), agora dizemos que não saímos, só para ela ficar descansada. Mas fazemos a nossa vida normal, só com alguns cuidados, que isto é tudo um exagero.
A senhora chegou, parou a uma razoável distância, e ele também está bem longe. Ri-se e diz que exagero por exagero, mais vale prevenir que remediar.
A Uma está impaciente - lá está esta na conversa - chama-me, os senhores têm apoio e uma filha que se preocupa e é aldrabada à força toda nos relatórios diários, só para ficar mais descansada. Os papéis estão invertidos. Mas eu também fico mais descansada.
Sigo o meu caminho, despeço-me com um aceno, enquanto ele ensaia o início de mais um sprint e ela se ri enquanto quase encolhe os ombros.
Não sei o que é pior, aldrabarem a filha ou fazerem uma vida normal. Esta malta mais velhota está muito afoita. Amigos e conhecidos, a dizer que a miudagem se porta lindamente, mas que os pais estão a dar problemas.
Vocês querem ver que é por causa da população sénior que vamos levar mesmo com o estado de emergência? (sim, eu sei que há outros mecanismos para obrigar ao confinamento obrigatório, como os que estão a ser adotados em Ovar).
Cambada de insubordinados, pá.
Se lá chegar, vou ser TÃO assim :)