Uma questão de língua
Quando era miúda, receber uma carta, no correio, causava uma enorme excitação. Ainda tive, durante uns tempos, uns pen pals, que me ajudavam a limar o inglês e me davam uma luz sobre formas diferentes de estar na vida mas que me proporcionavam, acima de tudo, o excitex de receber snail mail.
Esta troca constituía uma conversa, através da escrita.
Fast forward para 1994 e o excitex era receber um mail. Tão pouca gente tinha endereço de mail, na altura, que receber um mail era uma excitação. olgajoao@telepac.pt, foi o meu primeiro mail. E através do mail, conversei com muita gente.
As coisas aceleraram e, hoje dia, usamos muitas ferramentas para conversar através da escrita, e são cada vez mais rápidas, mais instantâneas, mais imediatas.
Uma conversa através da escrita não substitui uma conversa de viva voz, ou cara a cara, claro. Há camadas adicionais de dados que nos chegam através do que ouvimos e do que vemos, do que cheiramos, do que sentimos, e que a escrita, por rica que seja, não consegue providenciar com a mesma intensidade e riqueza.
Mas, há vantagens numa conversa escrita. Para já, é muito menos intrusiva, e pode alongar-se mais no tempo, não é? Eu recebo qualquer coisa agora, mas neste momento não me dá jeito, que estou numa reunião, pelo que devolvo mais tarde - ou devolvo durante a reunião, mas, numa mensagem escrita posso fazê-lo, de viva voz era mais chato, que me interrompia a reunião. As mensagens são assim uma espécie de sexo tântrico....... duram, duram, duram. Às vezes dias, às vezes semanas, há conversas que duram meses. Presumo que até mesmo anos.
Há vantagens adicionais nas mensagens escritas. Fica o registo.
Enquanto que numa conversa presencial ou de voz, apenas podemos contar com a nossa memória, numa conversa escrita fica o registo. É uma conversa à qual acedemos as vezes que quisermos, está sempre disponível.
É verdade que o som de uma voz bem colocada estremece, que um piscar de olhos abala, que um toque perturba, que um odor inebria (enfim, neste caso nem sempre pelos melhores motivos), mas não é menos verdade que a palavra certa no sítio certo pode agitar, a conjugação certa do verbo pode impressionar e uma metáfora bem sacada pode fazer tremer as pernas e pode abalar as entranhas. Que abala.
Com a vantagem de que são conversas a que podemos regressar. Podemos ler, e reler, e treler as conversas e ver se o efeito que nos provoca continua a ser o mesmo, ou se certas palavras perdem ou ganham impacto, à medida que o tempo passa. Encontramos novos significados, lemos nas entrelinhas, escrutinamos propósitos, arrepiamo-nos outra vez, ou pela primeira vez. Nada disto é possível, ao vivo e a cores ou de viva voz. Outros meios, outros ganhos.
Salvo raras exceções, um erro ortográfico é um turn off desgraçado, um erro de concordância um desastre do qual se recupera com dificuldade e uma má construção uma calamidade sem retorno. Sobretudo se sistemáticos.
Vantagem, portanto, para os que sabem escrever, para os poetas, para os curiosos, para os que experimentam, para os que não hesitam em usar a palavra certa no momento certo, sem medos, porque todas as palavras são para escrever, se ajudarem, lá está, a agitar, a impressionar, a fazer tremer as pernas e a abalar as entranhas.
Há muito tempo que digo que saber escrever é essencial.
É uma questão de língua.
E, como sabemos, as questões de língua são sempre fundamentais.
Porque nos abalam as entranhas.