Quando morre alguém
Tenho este post atravessado há uns anos. Há tantos anos que eu ainda nem sequer tinha Blog. O atravessamento agravou-se aquando da morte do Miguel Portas, e agora o Bernardo Sassetti parece ter sido a gota de água.
Quando morre uma figura pública, acabou-se, para nós, que não lhe éramos próximos. Para nós comuns mortais, que não fazíamos parte do seu círculo de amigos, acabou-se o tempo de homenagem. Porque as homenagens ou manifestações de apreço só servem enquanto as pessoas estão vivas. Se morre um artista de cuja obra eu tenha sido apreciadora, é enquanto ele é vivo que eu manifesto o meu gosto. Seja comprando o que ele produz, seja assistindo aos seus espectáculos, seja, para os que têm mais lata e em se apresentando a ocasião, pedindo um autógrafo e, para os que tenham mesmo MUITA lata, abordando essa pessoa (atenção, não me refiro a stalkers), e dizendo-lhe "olhe, gosto muito do seu trabalho, obrigada".
Mas, no momento em que ele morre, acabou-se. Para mim. Apreciadora do trabalho. Já não há tempo para mais homenagens, a obra fica, mas o artista morreu, ali, naquele preciso momento em que o corpo deixou de funcionar, seja qual tenha sido a razão dessa paragem.
O momento a seguir não é para os fans ou apreciadores do artista/figura pública. O momento a seguir é para quem perdeu um pai, uma mãe, um filho, um amigo. A partir do momento em que essa pessoa morre, deixa de nos pertencer e passa a pertencer apenas aos que deles eram próximos, aos que dele gostaram, e teriam gostado, independentemente da profissão que tivesse escolhido.
O circo que se monta à volta da morte das figuras públicas é, para mim, odioso. E as pessoas que estão realmente a sofrer, ainda têm de arranjar forças para levar com o circo, quando a única coisa que querem é aguentar-se nas pernas, e já basta o que basta, não é preciso circo. O circo serve para deixar as pessoas mais exaustas, mais vazias. O circo é uma imposição que ninguém merece.
Em tempos tive um amigo que era uma figura pública muito conhecida e muito querida. Quando ele morreu, a família mais próxima era constituída por meia dúzia de pessoas. Pessoas que queriam chorar o marido, o pai, o padrasto, o amigo. Pessoas que tiveram de preparar uma cerimónia que queriam intima e discreta, numa das capelas laterais da Basílica da Estrela, e que de repente se viram na necessidade de mudar tudo, para que fosse na nave central, e contactar a polícia porque o trânsito estava interrompido, e que tiveram de se esmifrar para cumprir os desejos do morto (nestas coisas toda a gente tem opinião de como se deve fazer a coisa, e nós só queríamos cumprir as últimas vontades desse tal amigo). E tiveram ainda que passar horas e horas e horas em que apenas lhes apetecia chorar, a fazer sala, junto de perfeitos desconhecidos que repetiam, julgando-se originais, a mesma lengalenga "gostava muito do seu pai". Ad Eternum.
Uma figura pública, quando morre, deixa de ser nossa. Passa a ser só da família. Tudo o resto é circo cheio de palhaços. Pobres. De espírito.